Filmagens do
documentário 'Lampião, o Governador do Sertão' desbravam povoados de Paulo Afonso e o Cariri cearense
Por *Antonio
Laudenir, laudenir.oliveira@svm.com.br 00:00 / 10 de Novembro de
2019 ATUALIZADO ÀS 00:41
Novo filme de
Wolney Oliveira investiga a influência do cangaço na cultura brasileira e
internacional. Além da Região Sul do Estado, equipe vai percorrer Paulo Afonso
(BA), Piranhas (AL), Bezerros (PE) e Recife (PE)
Encontro Wolney Oliveira no Aeroporto
Pinto Martins. Voo rápido rumo a Juazeiro do Norte. Guardo
lembranças de ter ido ainda criança. Espiava naqueles monóculos fotos
da família no Horto. Gente feliz. Padim Ciço. Parecia um pequeno filme.
Tecnicamente é a primeira vez no Cariri.
O intuito é acompanhar, com exclusividade, quatro
dias de filmagem do documentário "Lampião, o Governador do
Sertão". A empreitada é ambição antiga do cineasta cearense.
Explica-se. Por volta de 2006, o filme estava engatilhado e já contava com um
bom número de entrevistas gravadas.
A pólvora explodiu no telefonema do amigo e
pesquisador João de Sousa Lima. Direto de Paulo Afonso (BA), o
contato afirmava que dois remanescentes do famoso bando de Lampião (1898-1938)
foram identificados. "Wolney, achei Durvinha e Moreno",
alertou a fonte.
Eram as alcunhas de Antônio Ignácio da Silva e
Durvalina Gomes de Sá. O trabalho ganhou rumos. "Precisava contar a
história de quem estava vivo. Quem estava morto podia esperar um pouco
mais", resgata o diretor. O contato com os ex-cangaceiros durou felizes
quatro anos. Nascia, assim, "Os
últimos Cangaceiros" (2011).
Entre outros projetos, como o recente "Os Soldados da Borracha" (2019), Wolney
percebeu a necessidade de voltar ao encalço de Lampião. Tudo começou com uma
carta. Corria 1926 e a missiva endereçada ao então mandatário de Pernambuco,
Júlio de Melo, evocava assunto dos mais urgentes.
"Eu
que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão, fico
governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio
Branco". As linhas de Virgulino continuavam: "E o senhor, do seu
lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife".
Atrevimento ou desejo de paz, de certo, as palavras
do Capitão seguem reverberando 90 anos depois. A missão do documentário é
decifrar as influências do cangaço na produção cultural brasileira e mundial.
No avião, o diretor da Casa Amarela Eusélio Oliveira e do Cine Ceará encara a
janela e suspira. "Cara, imagina. Lampião reinou 20 anos e naquela época,
andava isso tudo, às vezes carregando 40 quilos em arma, joia, o caramba".
Além das raízes familiares e do apreço pelo
caldeirão artístico do Cariri, o território foi palco do primeiro longa de
Wolney, "Milagre em Juazeiro" (1999). Nos anos 1990,
nas muitas idas, um carro deu o "prego" no caminho. "Levamos 24
horas pra chegar", resgata.
Dos cinco filmes guiados por Wolney, três iluminam
a região. "Filmei 11 romarias. Não digo que fiz um filme. Me tornei um
devoto", brinca. Em 2018, o "Português" (alcunha dada por
Durvinha) voltou à trilha investigativa interrompida anos antes. O intervalo
rendeu novos personagens e cenários. Explicar o fenômeno de Virgulino e Maria
Bonita (1911-1938) passa pelo mergulho no artesanato, culinária, moda,
literatura e obviamente o cinema. Nesse último, a obra "O
Cangaceiro" (1953), de Lima Barreto (1906-82), tratou de unir
dois continentes.
Após rodar cenas na Grota de Angicos,
em Sergipe, durante missa pelos 80 anos da morte do Capitão, em 2018, Wolney
foi a Paris colher o depoimento de dois críticos de cinema. Eles assistiram, na
infância, ao clássico de Lima Barreto (1906-1982), vencedor do prêmio de
"Melhor filme de aventura" e "Melhor trilha sonora" no
Festival de Cannes.
Agora, entre o fim de outubro e novembro, o
realizador lidera um grupo comprometido a percorrer estradas que atravessam o
Ceará, Bahia, Alagoas e Pernambuco. As primeiras visitas contemplam Crato,
Juazeiro do Norte e Barbalha. O time é formado por Alex Meira (assistente
de câmera), Assis Ceará (eletricista), Dayane
Oliveira (produtora), Evair Moura (motorista), Léo
Oliveira (som direto), Raimundo Neto (motorista)
e Rogério Rezende (diretor de fotografia).
Inicialmente, a reconstrução do passado exige o
entendimento de vozes do presente. Nas rádios locais, Wolney convoca alunos de
escolas públicas a escreverem textos que abordem o cangaço. Jovens de 12 a 17
anos podem participar do filme e serão agraciados com um cachê simbólico.
Som, câmera...
À tarde de quinta-feira (31) marcou o encontro com
a arte de Lusyennir Lacerda e Demóstenes
Fidélis. No bairro Santo Antônio, em
Juazeiro, o casal desenvolve delicados tabuleiros de xadrez, nos quais são
reproduzidos cenários e expressões populares. As temáticas Canudos, cangaço e
reisado são recriadas em massa feita à base de fécula de mandioca. O colorido
entrega poesia ao cenário de guerra entre volantes e cangaceiros.
Embate sertanejo na delicada criação de Demóstenes e LusyennirRogério Rezende
A arte da dupla agora divide espaço com fios,
lâmpadas, câmeras e toda uma parafernália quase alienígena. Aos poucos, o
convívio no set improvisado vai deixando Demóstenes e Lusyennir à vontade. O
tempo auxilia a abordagem pretendida. O casal confecciona as peças. O apelo da
cena revela a silenciosa cumplicidade envolvida entre os dois artistas.
Chega o novembro
José Bonieck é historiador, artesão e sanfoneiro. A lida
envolve o entalhe da imburana. Desde pequeno as cores do cangaço lhe
despertavam interesse. Padre Cícero e Lampião foram as primeiras produções. Da
manipulação da madeira, cria representações de figuras populares. Cita Mestre
Noza (1897-1983) com profunda reverência e brilho nos olhos.
A assinatura Boni também demanda os esforços da
companheira Débora Raquel. Se o jovem artista é hábil no processo
de moldar peças simpáticas e repletas de cor, a parceira atua na área da
divulgação e venda. Além do coração, dividem o afeto pela leitura e música. A
oficina se mistura com a pequena casa. Ferramentas dividem espaço com
fotografias e outras obras experimentais.
O espaço para os visitantes montarem o equipamento
é ainda mais compacto e exige atenção das lentes comandadas por Rogério Rezende
e Alex Meira. Por sua vez, Wolney é só alegria com a fala embasada e respeitosa
de Boni. É quando o realizador interage com um sinal de positivo nas mãos.
Ouvir é o segredo.
Dali o destino é o lar do pesquisador Margébio
de Lucena. Cuidadoso nas respostas e firme nos dados apontados, o
oftalmologista divide uma verdadeira aula com os presentes. Durante uma tarde
inteira, resgata as muitas conversas feitas com ex-cangaceiros e o contato fiel
com registros históricos.
Bandido ou herói, Lampião e seus asseclas deixaram
marca indelével. A participação do estudioso contribui para as muitas
perspectivas do tema a serem enfrentadas por Wolney. É momento de descansar. O
Dia de Finados, no sábado, exigiria ainda mais da equipe.
A colina do Horto é tomada por romeiros de
diferentes estados nordestinos. O volume de visitantes inspirou a produção a
criar um totem com as imagens de Lampião e Maria Bonita. O traço do cartunista
Klévisson Viana amplia o tom idílico da intervenção.A proposta é simples. Quem
quiser pode chegar e tirar uma foto. A única exigência é fitar a câmera e falar
do cangaço. Naturalmente os participantes se aproximam, e o bom humor invade a
filmagem.
Formação do time no Horto: Em pé (Wolney, Assis e Léo). Agachados Kaika
Silva (produtor cultural do Crato), Evair, Dayane e Alex. O fotógrafo Rogério
Rezende filmava tomadas áreas e não participou do retratoAntonio Laudenir
Ao meio-dia o destino é a Missa do Chapéu,
no Centro. Cinema é uma rotina exaustiva, braçal e somente possível com ação em
equipe. O respeito ao cronograma é fundamental para que o trabalho se
desenvolva. A produtora Dayane Oliveira é total atenção ao entorno do set.
Sempre atenta a qualquer ruído que atrapalhe a captação das imagens. Cuida da
alimentação ao uso do protetor solar.
É perceptível a interação dos envolvidos. Quando
uma boa conversa é registrada, todos desfilam um largo sorriso. Pouco importa
as condições da locação. "Para trabalhar com cinema, deve fazer porque
gosta", observa o motorista Evair.
Nas poucas horas vagas, geralmente no intervalo
entre as cidades e nas paradas de alimentação, os assuntos mais puxados
envolvem o mercado de cinema. O assunto família é outra manifestação
recorrente. Alguns trabalham juntos por mais de 20 anos.
Conhecem muitos palmos de chão cearense e os
bastidores do criar cinema no Estado. A política Federal de censura e os cortes
no setor cinematográfico preocupam. A proposta de redação do Enem, que fala de
democratização do acesso ao cinema no Brasil, movimentou debates.
O domingo trouxe Barbalha e a arte de Wilton
Santos. Areia, arame e papelão alicerçam as esculturas. É capaz de
recriar episódios violentos, a exemplo da cena das cabeças cortadas de Lampião
e seu bando. Em paralelo, é suave na composição de divindades e personagens
folclóricos.
Uma das peças desenvolvidas pelo artesão Wilton SilvaRogério Rezende
A última noite na companhia da equipe faz refletir
a experiência. Impossível não questionar o ano de 2019. Período dado ao
extermínio e descrença da cultura e ciência. Felizmente, no mesmo gomo temos
outros sabores. Bem mais felizes.
Foi ano de "Pacarrete". Allan, Marcélia e Gramado. Rosemberg e "Notícias
do Fim do Mundo". "Greta", de Armando Praça. "Clube dos Canibais" assinado por
Guto Parente. "Bate Coração". "Soldados da Borracha".
"Marie" produzido por Arthur Leite. Cannes. Karim. "A
Vida Invisível". "Bacurau" com Fabíola Liper, Uirá dos Reis e o "Velho
Menino" Rodger Rogério. Lembro de Fernanda Montenegro lendo a carta na abertura do
Cine Ceará.
Quem enxergava aquela terra apenas pela recordação
do monóculo, agora guarda outras leituras. Encarei beleza. Inocência.
Contradições. Bondade. Empatia. Desejo por dias melhores. Testemunhos das
muitas crenças. Injustiças, violência e resignação.
Vi trabalhadores dedicados ao ofício. O fazer
cinema é sinônimo de sobrevivência para inúmeras famílias. Todos ganham quando
um filme é produzido. O grupo seguirá as pegadas do cangaço por Nova
Olinda (CE), Paulo Afonso (BA), Piranhas (AL), Bezerros (PE)
e Recife (PE). Isso, se novas descobertas não mudarem os
destinos da saga.
ENTREVISTA
Garimpeiro de histórias
Verso: Quais as suas motivações pessoais para
contar a história de "Lampião, Governador do Sertão"?
Wolney Oliveira: Lampião
sempre foi um assunto que me apaixonou. Meu pai, Eusélio Oliveira me
influenciou no tema. Era um apaixonado pela história e o primeiro livro que li
sobre cangaço foi presente dele. Escrito por Paulo Gil Soares, sobre cangaço,
provavelmente tinha a ver com o filme "Memória do Cangaço" que é um
clássico do Cinema Novo guiado por Soares. Quando li "Milagre em
Joaseiro", de Ralph Della Cava, um dos livros mais importantes sobre o
Padre Cícero ao lado da obra de Lira Neto. Existem mais de 220 livros sobre
Cícero e mais de 300 sobre Lampião.
O texto de Ralph Della Cava fala da passagem de
Lampião em 1926 por Juazeiro e isso ficou na minha memória. É uma coisa que
está impregnada na cultura do Sertão e do Nordeste. Eu tenho essa mania,
defeito ou vantagem que eu prefiro que sobre do que falte material. Eu filmei
180 horas entre 2006 e praticamente 2011, ano da estreia de "Os Últimos
Cangaceiros". Entrevistei vários cangaceiros que não entraram no filme,
volantes e ex-coiteiros. Por meio do tema, conheci muitos estados do Nordeste.
Vários pontos belíssimos como Piranhas e o Raso da Catarina. Nosso País é muito
grande e não conhecemos parte dele.
V: Como você explica a paixão pelo documentário?
W:Tive
grandes influências. Eusélio Oliveira, meu pai e primeiro professor de cinema,
era apaixonado pelo documentário. A outra grande motivação foi a escola de
cinema de Cuba. Lá conheci grandes realizadores do gênero como Santiago
Álvarez, Fernando Pérez, Gerardo Tirrona. Os dois últimos foram meus
professores. Outra força é o meu querido mestre Eduardo Coutinho, que Deus
ilumine e proteja. Vi praticamente tudo dele.
Em 1981, fui fazer um curso de cinema direto em
Paris, fiquei três meses tendo aulas com discípulos de Jean Rouch. Entre as
técnicas dele, envolve se aproximar do personagem, ficar amigo. Claro, nem
sempre você pode fazer isso. É uma maneira de conseguir tirar o máximo de
informação e sentimento dessas pessoas.
V: Seus trabalhos abordam vivências marginalizadas.
Nesse sentido, qual é o compromisso do documentário?
W: Quem
tem mais a ver com isso é o 'Soldados da Borracha'. Até hoje é um tema
desconhecido por muita gente. Eu mesmo só fui saber quando tinha 40 anos.
Inclusive, o maior acervo dos soldados está no Mauc da UFC. É uma história de
pessoas marginalizadas, esquecidas, soterradas e menosprezadas. São histórias
que o Brasil não quer ver, contar e sentir. Isso é um motivo a mais para fazer
cinema documentário.
No "Milagre em Juazeiro", parto da beata
que foi torturada e perseguida pela Igreja. Imagina um milagre acontecer na
boca de uma negra 'pobre', 'feia', 'analfabeta', segundo os depoimentos de
padres da época; e no interior do Ceará? Juazeiro do Norte? Se fosse em Paris a
Igreja teria acatado. Como foi aqui não aceitou e até hoje não oficializou
ainda. Não beatificou Padre Cícero.
V: O Cine Ceará chega a 30 edições em 2020 e o que
você projeta para o próximo ano?
W: Superar
a 29ª edição é a mesma tarefa de tentar ir além de "Os Últimos
Cangaceiros". É um dos meus filmes prediletos. É o mais maduro. Já estamos
trabalhando no festival. Vamos lançar um livro sobre os 30 anos do Cine Ceará.
Vamos fazer em setembro de 2020. Ninguém sabe como vai estar a situação
política e econômica do País. Posso dizer que das 29 edições das quais produzi
e dirigi, 27 não teve nenhuma fácil. 2019 foi a mais difícil, mas também a de
maior sucesso em relação a todas as outras. A 30ª edição também é um desafio.
V: Já
pensou na aposentadoria ou é algo que não passa por sua cabeça? Quais trabalhos
você imagina se dedicar nos próximos anos?
W: Nunca
pensei em me aposentar. Óbvio, penso em relação à Casa Amarela é à
Universidade. Parar enquanto cineasta, não. Meu espelho e objetivo é Luiz
Carlos Barreto, um dos grandes nomes do cinema brasileiro e nordestino.
Barretão é de Sobral e no auge dos seus 91 aninhos estava numa audiência
pública no Supremo. Enquanto eu tiver forças, vou continuar filmando. A
projeção é que em quatro anos, eu me aposente da UFC e da Casa. Daí vou fazer
meus filmes que é o maior prazer da minha sina cinematográfica.
Além do "Lampião, o Governador do
Sertão", estamos finalizando "Vozão, Coração do meu Povão",
sobre o time do Ceará. Dirijo com o Joe Pimentel e deve sair em 2020. Estou
filmando "Memórias da Chuva", longa documentário sobre Jaguaribara,
que foi coberta pela água do Castanhão, maior açude da América Latina. Tem a
cidade de Guassussê que foi coberta pelas águas do Orós. Outro filme sobre
futebol é "Clássico Rei", que além do Joe inclui o Valdo Siqueira.
Vai contar os 100 anos do confronto entre os rivais.
V: Se
não fosse o cinema, o que existiria para você?
W: Quando
eu tinha por volta de 20 anos, minha avó, por parte de mãe, colocou na minha
cabeça que eu tinha que ser bancário. Até embarquei na onda dela, mas vi que
não tinha nada a ver. Minha paixão era cinema. Nessa época eu era fotógrafo de
still. Comecei fotografando casamento, batizado, aniversário e depois mais na
área do fotojornalismo e vídeo. Não me imagino em nenhuma outra ocupação que
não seja o cinema. Acho que minha vida não seria essa aventura que é fazer
cinema.
*O repórter viajou a convite da produção do filme
"Lampião, o Governador do Sertão"
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