quinta-feira, 4 de setembro de 2014

EU E DULCE: A ÚLTIMA GUERREIRA DO CANGAÇO.

Edson, Dulce, João S. Lima e Ciça

     EU E DULCE: A ÚLTIMA GUERREIRA DO CANGAÇO.

     Em 2003 imprimi a 1ª edição do livro Lampião em Paulo Afonso e fui convidado pelo escritor Antônio Amaury para lança-lo em São Paulo, em um evento que sempre acontecia na estação do Braz, com o título: O AUTOR NA PRAÇA.  Amaury aproveitou minha ida a SAMPA e me apresentou aos irmãos “MANO VEIO E MANO NOVO”. Dois irmãos que tem um famoso programa de rádio destinado aos nordestinos.
Lançamos com sucesso os livros na companhia de mais alguns escritores da região.
No dia seguinte pedi pra Amaury me levar em uma feira de antiguidades e no domingo nos dirigimos ao MASP- Museu de Artes de São Paulo, onde acontece uma famosa feira de Antiguidades. Ao nos aproximarmos da feira, a primeira pessoa que Amaury foi vendo foi o senhor “Acir” e me disse:
 - João, esse rapaz, o Acir, é filho da cangaceira Dulce!
 - Vamos lá falar com ele!
Amaury me apresentou o rapaz e conversamos por alguns minutos, depois o presenteei com um exemplar do meu livro e ele disse que só não me levaria pra conhecer a mãe dele porque ela residia em Campinas e estava doente no momento, deixando claro que a única coisa que eu conseguiria era apenas ser fotografado ao lado dela, pois ela não dava entrevistas e lembrou ainda que Amaury a conhecia há vários anos e mesmo tendo essa amizade e mantendo contatos com a cangaceira ela nunca cedeu entrevista a Amaury. Eu falei que entendia a postura e o direito dela manter o silêncio sobre seu passado.
Passei mais alguns dias com Amaury e retornei a Paulo Afonso, pois as férias estavam acabando e precisava retornar ao trabalho. Na época eu trabalhava como gerente de abastecimentos de aeronaves no aeroporto local.
Um dos vigilantes do aeroporto chamado Eraldo, sempre me dizia que sua avó  tinha sido cangaceira e como ele era muito brincalhão eu fui levando a conversa sem dar muita atenção. Certo dia passando em uma rua tive a atenção despertada por Eraldo que acenou pra que eu parasse minha moto. Eraldo foi logo dizendo:
 - Venha conhecer minha  avó que foi do cangaço!
Estacionei e fui ouvir essa história. Uma simpática senhora, já passando dos 90 anos de idade, saiu do seu quarto e veio falar comigo. Eu perguntei se era verdade que ela tinha sido cangaceira e ela respondeu:
 - Não meu filho, isso é conversa do Eraldo, minha irmã é que foi cangaceira mais ela morreu no cangaço!
 - E qual o nome de sua irmã?
 - Dulce!
 - Dulce? Dulce de Criança?
 - Essa mesmo!
 - Mais a Dulce tá viva!
- É mentira! Dulce morreu em Angicos!
- Não! Quem morreu em Angicos foi Maria Bonita e Enedina!
Nesse momento lembrei-me do Acir e contei a história que tinha conhecido o filho da Dulce e por mais que eu afirmasse as histórias sobre a cangaceira, dona Maria “Cícera” dizia não acreditar. Vasculhei em minha carteira o telefone do Acir e quando encontrei pedi pra utilizar o telefone dela pra comprovar o que estava dizendo.
Liguei e fui atendido de imediato pelo Acir. Quando falei quer era o escritor de João de Sousa Lima, o Acir foi muito receptivo e alegremente comentou dizendo que tinha lido meu livro e que tinha gostado muito das histórias. Eu o ouvi atentamente esperando a oportunidade de falar sobre o real motivo de minha ligação. Quando enfim ele perguntou por que eu estava ligando eu disse que estava na casa de uma senhora que afirmava ser irmã de sua mãe Dulce. Houve um breve silêncio e depois Acir comentou:
- Pelo amor de Deus João, minha mãe procura uma irmã a mais de 60 anos, me deixa falar com ela pra ver se é ela mesma!
Passei o telefone pra Maria Cícera e fiquei na expectativa sobre a conclusão da conversa. De repente Cícera chorou, desligou o telefone, sentou e com um grande sorriso de contentamento falou:
- Minha irmã tá viva!
Ficamos alguns minutos observando a felicidade daquela senhora, participando de sua alegria.
Dias depois recebo uma ligação. Dulce estava em Paulo Afonso e queria me conhecer.
Ela e o filho Acir vieram no voo da BRA, que fazia São Paulo/ Paulo Afonso duas vezes por semana.
Dia seguinte, dentro do horário marcado, segui até a casa de Cícera, que morava com sua filha Dil. Quando cheguei vi várias pessoas na sala e me aproximei. Apresentei-me e Dulce, conversamos muitos minutos e pude observar sua capacidade intelectual, mulher inteligente, com um misto de dureza na face e ao mesmo tempo de doçura na alma. Tempos depois ela  falou:
- Eu tenho uma grande dívida com você. Você me proporcionou o momento mais feliz de minha vida, tendo encontrado essa minha irmã. Meu filho aqui presente sabe que não dou entrevista pra homem nenhum, mas vou abrir uma exceção pra você, pois fiquei sabendo que você escreve livros sobre o cangaço e precisa saber um pouco de minha passagem por esse momento que não gosto de falar! Você quer fazer como?
- Quero filmar!
- Quanto tempo?
- Três horas!
- Três horas não, serão duas horas!
- Certo!
- Venha amanhã dez horas da manhã e conversaremos. Só que você não poderá me fazer duas perguntas que eu sei que você sabe sobre minha vida, pois se fizer eu encerro a entrevista. 
- uma das coisas eu sei e não te perguntarei. O outro assunto eu não sei do que se trata e se por acaso eu te fizer alguma pergunta sobre isso a senhora não responde!
- Combinado! Aguardo você amanhã!
Dia seguinte, eu e o pesquisador e cinegrafista Petrúcio nos dirigimos ao encontro marcado.
Dulce nos recebeu sorridente, conversamos um pouco e fomos até o muro, lugar onde uma frondosa árvore dava sombra e reinava um silêncio propício para não atrapalhar a filmagem.
Petrúcio colocou a filmadora em um tripé, eu me acomodei entre as duas irmãs, Cícera e Dulce, a entrevista começou. Durante duas horas as mulheres foram falando do sofrimento. Da dor de Dulce ter deixado a casa de seus pais, a força, levada por seu cunhado, pra ser trocada por ouro.
O tempo passou rápido. Finalizamos a entrevista e antes de sairmos, Dulce me agradeceu por aquele momento e disse:
- Você só poderá lançar essa entrevista depois que eu morrer! Posso confiar?
- Pode!
Dia seguinte, eu com minha família e o amigo-irmão Edson Barreto fomos visitar Dulce. De lá fomos todos almoçar em um restaurante no centro da cidade. Conversamos por muito tempo e ali eu pude entender o porquê do silêncio daquela misteriosa e ao mesmo tempo tão doce mulher. Suas dores  tão profundas de ter enfrentado um mundo tão hostil, sendo ainda tão criança. Pude compreender sua fé inabalável no Cristo que rege seus passos. Conheci os caminhos que a fizeram sábia. Entendi que suas feridas cicatrizaram na compreensão do silêncio que outros não entenderam. Dulce é tão pura-bela-sábia que é difícil não se emocionar mesmo ela permanecendo em seu silêncio.
Quando hoje só resta Dulce nos registros dos ex-cangaceiros, sendo a última pessoa a vergar sobre seu corpo as vestimentas do cangaço, eu afirmo que dentre muitas histórias que vivi nesse vasto mundo cangaceirístico, essa foi uma das histórias que mais marcas deixaram no íntimo de minha inquieta alma.
Fico feliz de tê-la conhecido e de em certo momento ter feito parte de sua alegria, mesmo ouvindo e compreendendo suas dores e tristezas de um passado ainda tão latente, tão presente nos sonhos de uma criança que correu caatinga à dentro, trocando seus mais puros desejos infantis pela dura concepção da realidade dura do aço e do ferro em brasa de armas que embalaram lutas ferrenhas no mais inóspito terreno do nordeste do meu Brasil.


João de Sousa Lima
Historiador e Escritor
Membro da ALPA- Academia de Letras de Paulo Afonso
Membro do GECC – Grupo de Estudos do Cangaço do Ceará
Membro da IGH- Instituto Geográfico e Histórico de Paulo Afonso
Membro da SBEC – Sociedade Brasileira de estudos do cangaço

Paulo Afonso, 02 de setembro de 2014.
Ciça, João Lima e Dulce

Dulce, Dil, Maria Ciça e João

Família de Dulce em Paulo Afonso

Petrúcio com Dulce, Dil e Ciça


Dulce com minhas filhas Letícia e Stéfany

Dulce com minha família

cangaceira Dulce em rara fotografia

Dulce como cangaceira

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